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Direito de Família e Sucessões


Tese de legítima defesa da honra é questionada no STF em atenção a casos de feminicídio; advogado comenta


IBDFAM em 04/02/2021


O Supremo Tribunal Federal – STF foi questionado, em dezembro de 2020, sobre a constitucionalidade da tese jurídica de legítima defesa da honra na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 779, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT. Com o pedido de liminar, a legenda defende que a argumentação tem sido aplicada para defender e absolver feminicidas.

De acordo com o PDT, com base na interpretação de dispositivos do Código Penal – CP e do Código de Processo Penal – CPP, a tese de legítima defesa da honra admite que uma pessoa mate outra em razão de traição em relação afetiva. Na maioria desses casos, a vítima é a mulher. Por isso, o entendimento é de há incompatibilidade com os direitos fundamentais à vida, à não discriminação e aos princípios da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade e da proporcionalidade.

O partido afirma que Tribunais de Justiça e o Superior Tribunal de Justiça – STJ ora anulam sentenças com base no artigo 593, inciso III, “d”, do CPP, por manifesta contrariedade à prova dos autos, ora mantêm as absolvições com base na soberania do júri. Na visão apresentada é de que a absolvição da pessoa acusada por teses de lesa-humanidade, como no caso, gera a nulidade da soberania dos veredictos atribuída ao Tribunal do Júri.

O pedido é que o STF interprete a Constituição de forma a impedir que os Tribunais do Júri utilizem a tese de legítima defesa da honra para aplicar a exclusão de ilicitude e a legítima defesa, ambas na legislação penal brasileira, aos crimes de feminicídio. A análise foi distribuída ao ministro Dias Toffoli e encaminhada à presidência da Corte para apreciação da liminar.

Objetificação ao machismo

A ADPF 779 foi protocolada, em nome do PDT, pelo advogado e professor Paulo Iotti, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. De acordo com o especialista, a tese de legítima defesa da honra confronta a atual luta das mulheres e as instrumentaliza ao machismo do homem, colocando-as como coisas de sua propriedade, além de naturalizar o feminicídio, possibilitando o assassinato pelo sentimento de perda.

Foi esse, inclusive, o entendimento dos ministros Alexandre de Moraes e Roberto Barroso em julgamento do STF em outubro de 2020. Na ocasião, os ministros foram vencidos pela Turma, por três votos a dois, o que motivou a criação da ADPF 779. O objetivo, segundo Iotti, é que o júri não possa absolver feminicidas por essa “nefasta e anacrônica tese de lesa-humanidade”.

“Ninguém defende que o adultério seria algo indolor, mas obviamente a traição em uma relação afetiva não pode justificar o assassinato de outra pessoa, pela supremacia do direito à vida sobre o direito à honra, algo que devia ser mais do que evidente nessa quadra histórica”, explica o advogado.

Ele acrescenta: “Então, quem defende que o júri pode absolver feminicida pela horrenda e nefasta tese de lesa-humanidade da legítima defesa da honra não pode tergiversar, tem que dizer que, mesmo que não votasse dessa forma, concorda que ‘não viola’ a Constituição uma absolvição tal pelo júri, embora as pessoas tergiversem na hora que cobro essa coerência”.

De acordo com o advogado, a jurisprudência do STF sempre admitiu recurso contra decisão de júris quando julgamento deste seja manifestamente contrário à prova dos autos, pela “soberania dos veredictos” não ser uma garantia “absoluta”, mas apenas relativa, já que não há direitos e garantias absolutos no Direito.

O relator, ministro Dias Toffoli, votou contra o que defende a ação no citado julgamento de outubro do STF. “Já pedi audiência com ele para que reconsidere sua posição, já que contrariou a citada jurisprudência pacífica do STF sobre o júri não poder julgar de forma manifestamente contrária à prova dos autos, para que não haja arbitrariedade das decisões. Dialogarei também com os outros ministros, como é de praxe em qualquer processo, em qualquer juízo ou tribunal”, antecipa Paulo Iotti.

Legítima defesa e argumentos contrários

De acordo com o advogado, a tese de legítima defesa da honra não encontra respaldo na legislação. “Não há dispositivo que a permita. Provavelmente quem defende esse absurdo a enquadra nas normas da legítima defesa. A ADPF 779 pede que os dispositivos da legítima defesa sejam interpretados como não admitindo absolvições por tal fundamento”, destaca.

“Quem se opõe à ADPF 779 diz que a Constituição garante ao júri a ‘soberania dos veredictos’, de sorte que ele poderia absolver por clemência e, assim, por qualquer fundamento. Acontece que a jurisprudência do STF sempre disse que essa ‘soberania’ é relativa, porque não há nada absoluto no Direito, e não permite julgamentos manifestamente contrários à prova dos autos, que é a famosa hipótese de cabimento de recurso contra decisões do júri segundo o CPP, como uma forma de se combater decisões arbitrárias”, pondera Iotti.

Ele lembra que o júri não está acima da Constituição e não pode tomar decisões que violem flagrantemente direitos fundamentais. “Dizem que não há como saber o fundamento do júri porque ele não precisa fundamentar as decisões – sobre isso, além de concordar que é inconstitucional essa forma de decisão sem fundamentação, o que é uma outra discussão, a afirmação é metafísica, convenientemente ignorando o que é, de fato, alegado nos júris.”

“Se a defesa invoca a legítima defesa da honra como única matéria de defesa, não se pode seriamente dizer que a absolvição não teria sido por isso, especialmente se as teses de defesa e acusação ficam anotadas na ata de julgamento – como uma forma do tribunal poder ver se a decisão foi ou não manifestamente contrária à prova dos autos.”

Clemência, autoria e materialidade

O especialista afasta outras ideias: “A lei não fala em ‘clemência’; fala que, feitas as perguntas sobre autoria e materialidade, pergunta-se se o júri absolve ou não o acusado, só que absolvições com autoria e materialidade provadas – e o júri decide essas questões de fato, a partir das provas dos autos – só se podem admitir nos casos de excludentes de ilicitude, que são a legítima defesa, o estado de necessidade, o estrito cumprimento de dever legal e a inexigibilidade de conduta diversa em geral.”

“Então, a uma, a lei não fala em “clemência”, isso é uma interpretação que não é obrigatória ao contrário do que parte da comunidade jurídica quer fazer crer; e a outra, absolvições com autoria e materialidade provadas só são coerentes com o sistema jurídico como um todo nos casos das excludentes de ilicitude citadas, já que o Direito deve ser interpretado de forma sistemática e não isolada.”

Iotti pontua que quem defende a soberania absoluta dos veredictos do júri contraria a própria jurisprudência do Supremo desde o advento da Constituição sobre o tema – com exceção do julgamento da Turma de outubro. “São, em geral, pessoas com severas reservas ao Direito Penal, o que merece profundo respeito, mas não podem defender como interpretação jurídica algo que viola por completo o Direito quando interpretado de forma sistemática, à luz das finalidades da Constituição.”

“Então, falar que a ‘soberania’ do júri chegaria ao ponto de poder julgar manifestamente contra a prova dos autos e ao Direito em vigor no país abre um perigosíssimo precedente que não pode ser aceito, sendo que o júri não foi criado para admitir julgamentos arbitrários, por puro preconceito ou estereótipos sociais”, conclui Paulo Iotti.

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